sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Beckenbauer, 70 anos: o craque que também chegou ao topo como técnico e dirigente

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A cena é emblemática. Em plena semifinal da Copa do Mundo, o craque com o braço imobilizado se doa em campo. Após duas substituições, a Alemanha Ocidental não podia mais tirar alguém do jogo. E, mesmo com a clavícula fraturada, Beckenbauer permaneceu liderando o time até o final dos 120 minutos de um épico. Se o duelo contra a Itália em 1970 é considerado por muitos como o melhor jogo da história dos Mundiais, o alto nível dos times e a emoção na vitória da Azzurra por 4 a 3 ajudam muito. No entanto, a atuação do Kaiser também ajuda a dar ares míticos. Mesmo derrotado, ele marcou o seu nome para sempre por aquele momento. Só um dos melhores capítulos da carreira brilhante.

Por tudo o que conquistou como jogador, Beckenbauer já teria um lugar privilegiado na história. Mas foi além, sendo a referência de grandes esquadrões, e se fez ainda mais importante, como o (ou, pelo menos, um dos) defensor mais cerebral que o futebol já viu. Nome fácil em qualquer lista que aponte os 10 melhores craques de todos os tempos, o Kaiser quase sempre está na metade de cima. E não se contentou com o reconhecimento apenas dentro de campo, se tornando bem sucedido também como técnico e dirigente. Poucos foram tão completos no esporte quanto ele. Difícil lembrar alguém que tenha se saído tão bem em tantas funções. Por vários motivos, uma lenda. Que chega aos 70 anos nesta sexta.
O craque
A própria data de nascimento de Beckenbauer já carrega em si um simbolismo para a Alemanha. O futuro Kaiser nasceu em 11 de setembro de 1945, apenas quatro meses depois que o Terceiro Reich ruiu e o país admitiu a derrota na Segunda Guerra Mundial. Assim, o filho de um funcionário dos correios cresceu na periferia de Munique, em um bairro operário da cidade que se reconstruía. E, no país que veria uma muralha dividindo-o ao meio, o muro do quintal de casa ajudou bastante o pequeno Franz. Lá, ele costumava bater a sua bola durante a infância. “Esse pedaço de parede foi meu companheiro mais honesto. Se você dava um passe correto, recebia corretamente”, afirma. Na brincadeira é que começou a moldar o talento que o colocaria entre os melhores da história.
Aos nove anos, Beckenbauer começou a carreira em um pequeno clube da cidade, o 1906 Munique, embora seu sonho fosse defender mesmo um dos gigantes da cidade: o Munique 1860. E o jovem atacante esteve às portas de realizar o seu objetivo. Diante das dificuldades financeiras de sua equipe, o garoto de 14 anos decidiu que seguiria ao clube logo após um torneio juvenil. A competição que mudou sua sorte e a de todo o futebol alemão. Na decisão, o 1906 Munique enfrentou justamente o 1860. Final tensa, cheia de entradas ríspidas. Tomou, inclusive, um tapa do zagueiro adversário. O que fez com que desistisse do time de coração. Junto com outros meninos do 1906, partiu ao Bayern, abaixo do sucesso do 1860 na época.
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Na nova equipe, Beckenbauer cresceu. Tornou-se meia e evoluiu como uma das maiores promessas do futebol alemão, decolando aos 18 anos. Estreou no time principal do Bayern pouco depois, em 1964, ajudando o clube no acesso à recém-criada Bundesliga. Enquanto ajudava o clube a construir sua hegemonia na primeira divisão, também passou a ser convocado à seleção principal.

Recuando um pouco mais, como volante, Beckenbauer participou de sua primeira Copa do Mundo aos 21 anos. E já como um dos melhores da competição. Foi uma das estrelas da campanha da Alemanha no Mundial de 1966, marcando quatro gols, inclusive um balaço na semifinal diante da União Soviética. Mas o desfecho da decisão esteve longe do esperado, acabando com o vice-campeonato. Ao mesmo tempo, o craque começava a erguer seu reino na Baviera. O primeiro título veio com a Copa da Alemanha de 1965/66, encerrando o jejum de uma década do Bayern. O primeiro da série mais vitoriosa do clube.
Beckenbauer era a estrela da companhia, mas não estava só. O Bayern teve a sorte e a competência de revelar um timaço na mesma época. Amigo de infância do craque, Sepp Maier queria ser tenista, mas foi convencido pelo companheiro em optar pelo futebol e começou a fechar o gol. E a diretoria garimpou outros jovens talentos, como Gerd Müller, Paul Breitner e Uli Hoeness. Embora a grande referência fosse mesmo o Kaiser, um diferencial atuando à frente da zaga, como líbero. Não inventou a posição, mas a levou à perfeição. Inspirou-se principalmente na maneira de jogar do italiano Giacinto Facchetti, lateral esquerdo de origem, mas com muita qualidade na marcação e na saída de jogo.
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Dono de um físico imponente e passadas largas, o craque aprimorou o seu poder de marcação. Tinha a autoridade de um Imperador na posição. Mas mantinha a exímia técnica na saída de bola e na condução do jogo, graças à habilidade nas fintas. Como o líder de um exército, marchava rumo ao campo adversário trazendo consigo os seus soldados. Possuía ótima visão de jogo e precisão nos lançamentos, criando ocasiões aos companheiros como mísseis teleguiados. E isso sem contar no canhão que permanecia na perna direita, capaz de chutes indefensáveis de fora da área. O Kaiser sabia onde se posicionar, a qualquer momento do jogo. E em qual parte do campo fosse. Aí estava a sua essência como líbero: a liberdade para criar.

Jogando dessa forma, Beckenbauer serviu como espinha dorsal para grandes times. Seu último grande momento como meio-campista veio na estupenda Copa do Mundo que fez em 1970, caindo para a Itália de Facchetti. Mas, como líbero, capitaneou o Bayern que iniciou sua dinastia 1968/69, faturando a dobradinha nos torneios nacionais. Com a conquista da Bundesliga, encerrou a seca de três décadas dos bávaros no Campeonato Alemão. Já na final da Copa da Alemanha, aliás, é que teria surgido o apelido de Kaiser. O líbero cometeu falta dura sobre Reinhard Libuda, ídolo do Schalke 04 e conhecido como “Rei da Vestfália”. Vaiado pela torcida dos Azuis Reais, então, o bávaro começou a fazer embaixadinhas na beira do campo. Campeão, foi proclamado como Imperador pela imprensa.
No início dos anos 1970, o Bayern de Munique conquistou o tricampeonato da Bundesliga. Mesmo com a concorrência do fabuloso time do Borussia Mönchengladbach, os bávaros eram imbatíveis no país. E, juntos, os dois timaços formaram a base da seleção alemã mais vitoriosa da história. Primeiro, conquistaram a Euro de 1972, batendo a União Soviética na decisão. Prelúdio sobre o que viria em 1974, na Copa do Mundo realizada dentro de casa. Durante a campanha, o capitão precisou tomar as rédeas do time ao lado do técnico Helmut Schön, especialmente depois da derrota para a Alemanha Oriental na primeira fase, que rendeu muitas críticas da imprensa. A resposta veio com três vitórias na segunda fase, sobre Polônia, Suécia e Iugoslávia. Rumo à temida final contra a Holanda.
Bildnummer: 01318805 Datum: 07.07.1974 Copyright: imago/PanoramiC Johann Cruyff (li., Niederlande) gegen Franz Beckenbauer (BR Deutschland); Endspiel, Johan Cruijff, Holland - BRD 1:2, Vdia, quer, Zweikampf, Duell, Ball, Weltmeisterschaft 1974, Länderspiel, Finale, Nationalmannschaft, Nationalteam, Nationaltrikot, München pan0309 Dynamik, Fußball WM Herren Mannschaft Gruppenbild Aktion Personen
Se a Laranja Mecânica de Rinus Michels representou uma revolução no futebol, a Alemanha Ocidental se opôs como a contrarrevolução. Juntas, duas seleções que elevaram o futebol a um novo patamar de alternativas táticas e intensidade. Cruyff era um gênio a seu modo, o anarquista que coordenava o Futebol Total holandês. Não se pode, porém, menosprezar o craque que o encarou. Beckenbauer também inventou sua própria estratégia no campo de batalha, que desmantelou a harmonia caótica orquestrada pelo camisa 14. Resguardado por Hans-Georg Schwarzenbeck, seu fiel guarda-costas também no Bayern, conteve o irresistível ataque de Michels. Liderou a vitória alemã por 2 a 1, de virada, com gols de Breitner e Gerd Müller. O Kaiser passou a imperar em todo o mundo levantando a taça justo em sua Munique.

A vitória na final da Copa também representou um rito de passagem na Europa. Por mais inovador que fosse, o futebol de Cruyff acabou derrotado por Beckenbauer. E o Ajax tricampeão europeu passou o trono ao Bayern de Munique. O primeiro título da Champions veio semanas antes do bicampeonato da seleção, em uma decisão cardíaca contra o Atlético de Madrid. Já na sequência, os bávaros também completaram o seu tricampeonato.
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Apesar do período vitorioso no plano continental, o Bayern via de longe o Gladbach na Bundesliga, o que não eximiu o clube de pequenas crises. O título da Copa dos Campeões de 1976 e o subsequente mundial contra o Cruzeiro acabaram colocando o ponto final em uma era. A Alemanha perdeu o bicampeonato da Euro em 1976, no lendário pênalti de Panenka. Já no ano seguinte, Beckenbauer se despediu da seleção e do Bayern. No New York Cosmos seria companheiro de Pelé. O Kaiser e o Rei, em um dos times fantásticos do momento.

Nos Estados Unidos, Beckenbauer também imperou. Conquistou três títulos da NASL em quatro temporadas, assumindo o cetro logo após a saída de Pelé. Segundo suas próprias palavras, a melhor decisão da sua vida, por aquilo que aconteceu também fora de campo. O Kaiser absorveu uma nova cultura na megalópole. Novas ideias, que o guiariam nos anos seguintes. A estadia em Nova York durou até 1980, quando voltou para uma breve passagem pelo Hamburgo, em um meganegócio. Só que, depois dos 35 anos, o líbero já estava distante de sua melhor forma. Em um time muito forte, tornou-se mero coadjuvante em mais uma conquista da Bundesliga. Antes de uma temporada de despedida pelo Cosmos, pendurando as chuteiras em 1983.
O técnico
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Beckenbauer não passou mais do que alguns meses distante do futebol. Após a decepcionante campanha na Eurocopa de 1984, Jupp Derwall deixou o comando da seleção alemã. E o antigo capitão acabou escolhido para assumir o comando técnico do Nationalelf. Contando com uma geração ascendente de talentos, estrelada pelo veterano Rummenigge, seu ex-companheiro no Bayern, o Kaiser levou a Alemanha Ocidental ao vice-campeonato mundial em 1986, o segundo consecutivo. Não houve jeito de triunfar diante do momento iluminado de Maradona. Contudo, a vingança alemã viria quatro anos depois, na Copa de 1990. Era um momento especial ao país, que destruía o Muro de Berlim e se reunificava. Orgulho exibido em campo, na revanche contra a Argentina, com a vitória por 1 a 0 na final.

Em tempos de futebol muito defensivo em todo o mundo, influenciado pela postura dos times na Serie A, Beckenbauer conseguiu fazer a Alemanha Ocidental exibir um jogo mais atraente. Não negou a tática fechada da época, mas contava com a magia dos bons nomes de seu elenco. Matthäus era o seu espelho dentro de campo: a liderança tática e técnica, com liberdade para flutuar entre o ataque e a defesa. Na frente, Klinsmann brilhava pela mobilidade e pelo faro de gol. Enquanto outros tantos destaques ocupavam as demais posições, como Littbarski, Hässler, Brehme, Kohler e Illgner. Em um Mundial marcado pelos jogos difíceis de assistir, o Nationalelf valia o ingresso. Indubitavelmente, mereceu a taça.
Campeão como jogador e técnico, Beckenbauer deixou a seleção logo após a Copa do Mundo. Teve uma breve passagem pelo Olympique de Marseille, então vivendo a bonança financeira de Bernard Tapie, também presidente da Adidas. O Kaiser chegou junto com Dragan Stojkovic, um dos melhores do Mundial e contratação mais cara da história da Ligue 1 até então. Porém, não conseguiu fazer um bom trabalho, renunciando ao cargo com resultados modestos e problemas no elenco. Raymond Goethals assumiu a equipe e a impulsionou ao título francês, bem como ao vice na Champions, perdendo para o Estrela Vermelha. Ainda assim, Beckenbauer teve a sua parcela de contribuição: permaneceu como diretor de futebol. E, segundo o próprio Tapie, a ordem que o alemão pôs na casa se fez fundamental. “A mudança foi inacreditável. Ele nos deu tudo o que não tínhamos, o Marseille se tornou um time muito disciplinado. A sua cota de sucesso no título da Champions de 1993 é enorme”, afirmava o presidente.
O dirigente
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Deixando Marselha ao final da temporada 1990/91, Beckenbauer voltou a Munique. E tomou gosto pelo trabalho como dirigente. Assumiu a vice-presidência do Bayern, antes de se tornar presidente em 1994. Ao longo das duas décadas anteriores, os bávaros viam os seus ciclos de sucesso se intermediarem com alguns anos de seca. Algo que se transformou na segunda metade da década de 1990, não por mera coincidência. A partir de então, o Bayern conquistou 13 títulos da Bundesliga em 22 temporadas. Além disso, foram mais quatro conquistas continentais: duas Champions, uma Copa da Uefa e uma Supercopa Europeia. Que não necessariamente aconteceram sob a presidência do Kaiser, mas embarcaram em seu legado.

Beckenbauer até assumiu o papel de técnico em dois breves períodos, justamente para levar o Bayern ao título da Bundesliga em 1993/94 e ao da Copa da Uefa. Entretanto, o seu trabalho aconteceu mesmo na gestão. A política de contratações sobre os melhores jogadores alemães se tornou mais agressiva, assim como a busca de jovens talentos em outros países. Desta forma, os bávaros montaram o esquadrão que conquistou a Champions em 2001. Além disso, houve mesmo uma modernização administrativa, com o clube caminhando em conjunto com a vanguarda do “futebol moderno”. Se o Kaiser era um sucesso de marketing em seus tempos de jogador, o Bayern absorveu muito bem isso. E, na economia mais forte da Europa, estabeleceu seu poder principalmente em contratos comerciais.
Beckenbauer permaneceu na presidência do Bayern até novembro de 2009. Neste intervalo, o clube se agigantou diante dos outros rivais na Alemanha, muito graças ao poder financeiro. Mesmo outros grandes clubes, como Borussia Dortmund e Schalke 04, tiveram problemas em suas contas no período. Os bávaros, por outro lado, se estabeleceram, com ajuda também da dominância que possuem na Baviera. O presidente injetou milhões nas contas do clube especialmente após vender parte das ações a Adidas e Audi. Outro passo importantíssimo veio em 2001, com o início da construção da Allianz Arena. O Estádio Olímpico de Munique foi um dos principais do mundo por três décadas, mas não atendia mais todas as necessidades comerciais do clube. A nova casa também fortaleceu as finanças.
O (indigesto) organizador da Copa
FIFA President Joseph Blatter, left, and president of the organizing committee of the Soccer World Cup 2006 Franz Beckenbauer play soccer during the countdown event at the Allianz Arena stadium in Munich, southern Germany, Thursday, June 9, 2005. The stadium will see the World Cup's opening match on June 9, 2006. (AP Photo/Uwe Lein)
Concomitantemente à presidência do Bayern, Beckenbauer chefiou a campanha da Alemanha para sediar a Copa de 2006. Venceu o processo de escolha, em uma eleição bastante polêmica da Fifa, em que os germânicos foram acusados de conceder privilégios a certos países para superar a África do Sul. Controvérsia que acabou minimizada diante do excelente trabalho que os alemães fizeram. Se o país vive grande momento no futebol, e não só pelos resultados, muitos dos créditos se devem à realização do torneio.

Presidindo o comitê organizador, o Kaiser ajudou a realizar um dos Mundiais mais sustentáveis da história. A infraestrutura já estava pronta, enquanto as melhorias nos estádios foram imediatamente absorvidas pelos clubes – exceção feita a Leipzig. Além disso, a Copa ajudou a catalisar o nacionalismo alemão, um sentimento muitas vezes contido por conta da história do país nas guerras mundiais. A mobilização gerada pelo torneio criou um ciclo benéfico dentro do futebol alemão. Estádios modernos passaram a levar mais torcedores às arquibancadas. Assim, a média de público cresceu 46% somente neste século, saltando de 30,8 mil presentes por jogo em 2000/01 para 44,2 mil na atual temporada. Isso sem contar ainda o trabalho de formação de jogadores feito pela federação e motivado também em partes pelo Mundial.
Só que, assim como a escolha da Alemanha como sede teve os seus problemas, Beckenbauer passou a se envolver com polêmicas mais frequentemente. A personalidade dura sempre foi um traço marcante desde os tempos de categorias de base. No entanto, como alguém cada vez mais envolvido nos meandros políticos, o Kaiser expôs a sua face. A relação íntima com dirigentes da Fifa, por exemplo, culminou em sua suspensão por não colaborar com as investigações sobre o caso de suborno na Copa de 2022. E, desligado do Bayern, o veterano passou a emprestar sua voz à mídia. Nos últimos tempos, coleciona declarações francas e críticas, mas que também soam como ranzinzas por vezes. Envolveu-se com questões suspeitas e sua visão se tornou cada vez mais dispensável.

Independente das contestações a sua figura pública, entretanto, Beckenbauer para sempre será lembrado como um personagem fundamental no futebol. O dirigente e o técnico tiveram papéis importantes, mas devem muito ao craque. Em um país que se orgulha dos gênios em diferentes áreas do conhecimento, o Kaiser foi o maior no futebol. Se o “futebol de filósofos” do Monty Python não passa de uma piada, a presença de Beckenbauer ao lado de Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzche e outras mentes brilhantes, de certa forma, tem toda a sua razão.

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