Uma decisão abrupta do STJD encerrou — ao menos no tapetão — uma controvérsia que durou 13 minutos e uma semana. A discussão sobre a anulação do Fla-Flu por causa do suposto erro de direito de Sandro Meira Ricci despertou o pior do nosso bacharelismo, naquele velho hábito de transformar o futebol num filme ruim de tribunal. Deletou-se, assim, o asterisco. É quando todos — torcedores, dirigentes e, por que não?, jornalistas — viram advogados de suas próprias causas e, desembainhando palavras pomposas, dão gravidade de “justiça” àquilo que deveria ser uma discussão mais simples.
O regulamento da Fifa não permite “interferência externa”, e é preciso atualizar o que é essa interferência. Antigamente, quando se lia essa expressão, imaginava-se alguém pré-combinado com a arbitragem, numa salinha escondida, uma atmosfera de espionagem, interferindo no resultado porque poderia ver os replays e até gritar “pênalti!” em tempo real nos ouvidos do juiz. O jogo todo, pensava-se, estaria sob risco da influência de alguém que ninguém sabe quem é nem para quem torce. A credibilidade do jogo sofreria um novo golpe.
(Diante dessa hipótese, eu me opunha à entrada da tecnologia, em artigos no GloboEsporte.com e participações no “Redação SporTV” — principalmente porque sou a favor de que time bom ganha até de juiz, entre outras razões. Creio que nossa tolerância com a mediocridade cresceu e, com ela, na direta proporção, a cobrança pela perfeição dos juízes. Traduzindo: os jogadores podem obter vitórias magras em 90 minutos de ruindade, porque precisamos delas, mas jamais daremos aos juízes o direito de estragar tais brilharecos num segundo).
Só que, com o avanço da tecnologia da informação, “interferência externa” se tornou algo muito mais simples: o contrabando da informação só precisa usar um dos celulares a que qualquer um de nós tem acesso. E há centenas de pessoas cercando o gramado — jornalistas, auxiliares, inspetores de federação — que estão conectadas a outros milhares que estão vendo a partida na TV e na web.
Há cinco anos, torcedores pagantes e juízes estavam unidos numa razoável bolha de ignorância — recorde-se que nossos placares eletrônicos nem sequer exibem repetições, a fim de “evitar pressão sobre os juízes”. Hoje, ninguém precisa dos telões para isso: o replay está à mão de qualquer um, através de imagens e comentários nos smartphones. Com um complicador covarde: nesse vaivém de dados, os juízes são os únicos proibidos — por regra — de ter acesso às imagens reprisadas em segundos.
Ou isso, ou aquilo
Manter o trio de arbitragem numa bolha de ignorância é improvável hoje em dia. Seria necessário que as TVs imitassem o que aconteceu em 13 de junho deste ano, na Copa América Centenário: o uruguaio Andrés Cunha, que apitou Brasil 0x1 Peru, esperou longos minutos para confirmar o gol de mão de Ruidíaz. Como a emissora americana não gerou o replay antes que o juiz decidisse o lance, não houve influência: mesmo quem tinha celulares no estádio ficou tão às escuras quanto o trio de arbitragem. Sem o replay, somos todos juízes ruins.
Ou isso, ou propor que estádio e gramado ganhem uma estrutura de aeroporto, em que os celulares sejam apreendidos, fazendo com que os jogos voltem àquela bolha ignorante que a Fifa pretendia nos anos 1990, quando proibia até cronômetros nos placares eletrônicos.
A era analógica, do início do futebol até há pouco, era bonita: havia algo de filosófico, de fatalismo, quando as falhas arbitrais mudavam os caminhos do jogo. Mas esta é uma abordagem quase lírica, de quem vê o futebol não só como uma fonte de orgulhos viciantes, mas como algo que também ensinava a ganhar, a perder e a empatar, por meios próprios e/ou com a interferência do imponderável. Aceitávamos isso. Em 2017, por fim, essa era acabará.
Fale-me de justiça
Conheço três lances com forte suspeita de interferência externa: o gol de mão do alviverde Barcos no Internacional 2x1 Palmeiras no Brasileiro-2012; o tento impedido de Hernane Brocador no Flamengo 1x1 Duque de Caxias do Estadual-2013; e, neste ano, Henrique no Fla 2x1 Flu. Deve haver mais.
Nos três gols, três semelhanças: todos eram ilegais. A interferência, se houve, os anulou. Por fim, os recursos aos tribunais vieram dos clubes que perderam a chance de se beneficiar desses erros — uma atitude de quem prima por legalismos, mas que, esportivamente, é bastante reprovável.
Ainda assim, é curioso ver como o Flamengo lidou, em lados opostos, com seus dois episódios.
autor ; Márvio dos Anjos
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